1.9.10

Caminhemos para que um dia possamos andar*

"Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada era seu mundo." (João Nogueira)


Que se foda o bom senso, a minha relação com as obras de arte são, acima de tudo, sexuais. A minha intimidade com algumas é tão grande que todos os sentimentos mais viscerais, naturalmente, afloram: superproteção violenta, adoração fanática, saudade desesperadora, Lucidez, Amor. Banalizar, a base de preconceitos, uma bela e honesta construção artística de animação na minha frente, por exemplo, é como dar um beliscão na cara da minha mulher. Infelizmente a minha educação emocional latina não harmoniza com o silêncio da paciência. A metodologia aplicada é antropologicamente clara e direta: Eu saio na porrada. É inevitável, é a desgraça do apaixonado. E como não me interessa o contato físico com qualquer um, escolho a arma da palavra, mais higiênica e consequente.

É fato. 99,9 % dos críticos de cinema – atenção, não estou falando do público em geral... – não sabe por onde passa a arte da animação. E este parece ser o ritmo natural das coisas... 99,9 % dos críticos literários também não tem a menor noção do que são as histórias em quadrinho. Culpa, não da indústria cultural, mas do ingênuo – porque alienado, quando se crê desalienado - olhar que se dirige aos produtos que dela nascem.

O termo “senso-comum” é comumente utilizado nos discursos insuflados dos elitistas para estabelecer sua diferença com o gado. Se termos psicanalíticos como “neurose” e “inconsciente” estão à disposição de qualquer um hoje, se são uso do senso-comum, deve-se não desesperar porque tais saberes foram ‘banalizados’ (!), mas celebrar a multiplicação dos pães.


É no lírico e monstruoso início do filme de classe Z Female Vampire, de Jess Franco, quando Lina Romay surge das brumas do desconhecido vestida de capa, coturno e cinto pretos, e a câmera adentra seus poros sedentos do desejo mais puro que sabemos que a Poesia só vem de um lugar: do coração dos artífices.

“Anyone can cook”, diz o eterno cheff Gusteau ao ratinho Remy em Ratatouille, numa das maiores obras de arte deste século. A culinária, uma arte que lida com tato, visão, paladar e olfato, memória, novidade e montagem, e que talvez seja a segunda maior de todas as artes (só perdendo para o sexo), é, falando de senso-comum, muitas vezes conscientemente esquecida como tal. Na subida (só possível no universo da animação) pelos caminhos de um roedor, dos esgotos obscuros da solidão à liberdade das luzes da cidade dos sonhos, contemplamos a maior apresentação audiovisual de um cenário (este totalmente irreal) desde Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone. É com Gusteau, gordinho como o cheff Alfred Hitchcock, o principal diálogo deste ratinho sonhador; é com Walt Disney, Winsor McCay, e outros sonhadores e criadores de movimento em mundos de linhas e cores o principal diálogo de Brad Bird e seus companheiros da Pixar.

Através da sinestesia das cores palatáveis em fogos de artifícios computadorizados Brad Bird, através de Remy, tenta explicar ao glutão Emile a beleza de simplesmente experimentar novos sabores. No início de Bastardos Inglórios, outra obra-prima deste século, há um momento ápice no diálogo travado entre Hans Landa e o fazendeiro francês em que o “jude hunter” fala, fazendo uma alegoria para complicar com o fato social da caça aos judeus pelos nazistas, da anti-natural aversão dos humanos aos ratos.

É anti-natural a maioria de nossas aversões e preconceitos, sejam raciais, sociais, econômicos, geográficos, artísticos. Se é de simpatias que se constrói uma personalidade, que ela seja sempre revista, auto-criticada, exposta às fagulhas da nossa mais pura lucidez.


Para Ego provar do mais belo prato foi preciso que o rato se travestisse de humano, contrabandeasse sua arte por debaixo dos panos. Iludindo as pré-concepções invadiu o paraíso, plantou a macieira e colheu maduro. Às vezes é preciso ser serpente para seduzir os que tudo já cobriram com seus véus de certeza.

Em 2011, o grande projeto de um movimento de jovens que já transcende a sigla APJCC é levar à discussão os mais vilipendiados suportes quando se trata de expressão artística: discutir as histórias em quadrinho, a animação, a televisão e os jogos eletrônicos interativos, sempre por apaixonados – por tais objetos e pela Razão – é o objetivo, humilde e violento, de desgraçados em busca de comunhão.


“O maior vilão é a neblina”, diz Lionay Dias sobre o espectro de visão que assola o senso-comum acerca do fantástico universo do vídeo-game. Murilo Coelho já falava faz tempo do “cancro estético”, onde são embalsamados os olhos acadêmicos, do “funil”, seja ele qual for, em que se colocam muitas vezes as autônomas obras de arte. Cauby Monteiro sempre alertou acerca da “viseira”, que impede a visão “scope” dos faroestes mais revolucionários.
A preocupação sempre foi de ordem patológica; a profilaxia não através da farmacologia, mas da enteogenia.

Carregamos a neblina e o vento, o vilão e o homem, a travessia é percorrida pelos sentidos, em direção aos objetos; que a estrada criticamente seja perseguida enquanto percorrida, para que caminhemos como o peregrino, enquanto o artista, errante, erre, e o senso-comum, andante, ande.
Caminhemos pois, para que um dia, sem muletas, essas artes possam voar.


Texto: Mateus Moura.
Imagens: Mateus Moura e Lionay Dias.

* publicado originalmente em Cinemateus

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara, concordo em tudo contigo. Fico feliz de ver, agora à distância, como mudastes. E de saber que fui parte disso. Quadrinhos, animação, videogames e tv são artes tão grandes quanto qualquer outra. São linguagens que podem ser dominadas, subvertidas e refinadas. Caras como Brad Bird, Alan Moore, Hideo Kojima e David Simon, promoveram revoluções tão intensas quanto Alfred Hitchcock, Herman Melville, Van Gogh e tantos outros. Reconhecer o trabalho desses mestres é dever dos que se denominam amantes da arte. Não ter preconceitos significa a liberdade. Liberdade de amar o que quiser.

Cauby Monteiro (APJCC)