4.8.10

Toy Story 3: leia os textos da APJCC sobre a animação do ano

That's the way to say goodbye*

Por Felipe Cruz


AO INFINITO

A infância deve ser uma das coisas mais idealizadas pelas pessoas em geral e mais reverenciadas pelas artes em particular. Tão idealizada que de vez em quando me pego pensando se esse momento da nossa existência merece tantas reverências, tantas glórias, e a verdade, para mim incontornável, é que quando me encontro encarando uma obra, como esta última animação da Pixar, sinto nos meus ossos que um dos motivos de a arte ter sempre existido na humanidade é a tentativa de resgatar mundos e sensações que todos perdemos pelo caminho. Apontando possibilidades, colocando questões, constatando sentimentos, a arte segue numa reconstrução que é criação e que tem vida própria, mas que sempre ressoa no nosso coração (porque toda grande obra de arte é um coração em forma de linguagem).

E se a infância sempre parece, depois que crescemos, como sendo um mundo à parte de qualquer realidade concreta e lógica, penso que a animação (linguagem que precisa criar, nas questões mais práticas, novos mundos para existir) é a linguagem que mais sinceramente se aproxima e se assemelha à falta de limites características da mente infantil. Não é que o cinema ou a literatura sejam sempre fracassados em representar essa época, mas há algo de sobrenatural no pacto que inconscientemente fazemos quando começamos a assistir uma animação e que naturalmente nos leva para um outro nível de compreensão, para uma nova freqüência de entendimento e de sensibilidade.

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E ALÉM!

Quando eu tinha 6, talvez 7 anos, minha mãe me deu um cavalo de brinquedo. Na época eu não sabia (quem sabe daí é que vinha a força dessa relação), mas o motivo de eu amar tanto aquele cavalo era que sempre que eu brincava com ele eu era levado para outros tantos lugares, que ficavam todos dentro de mim mesmo. Em tantas viagens, tantas aventuras, eu não percebi que estava crescendo e que estava, aos poucos, deixando de viajar, deixando de transportar “os sins desses horizontes” da minha vida.

Eu daria tudo que tenho e um pouco mais para ver, uma última vez, as imagens que minha imaginação de criança (meu espírito ainda livre) criava nessas brincadeiras todas: e a minha eterna gratidão aos gênios da Pixar está em poder reencontrá-las em uma sala de cinema, pelo preço de um ingresso. A obra-prima Toy Story 3 começa com a única imersão que é permitida ao público, durante toda a trilogia, na imaginação de Andy, o garoto a quem fomos apresentados 15 anos atrás, quando esse estúdio começou seu caminho que tantos presentes nos deu nos últimos anos. E, eu sei, representar a imaginação de um criança não é fácil, e a perfeição desta representação (que passa da categoria de símbolo para a da coisa em si) é apenas um dos pontos que fazem desta animação a grande obra de arte que é.

Como Rastros de Ódio, Toy Story é um épico – esta será sempre sua proporção – e como os grandes épicos esta obra irá se debruçar sobre grandes temas: lealdade, saudade, finitude, amizade. E se as duas primeiras animações construíram (fantasticamente) o mundo compartilhado por crianças e brinquedos, evidenciando a grandeza dessa relação, esta terceira sequência trata com inevitável afeto do fim deste universo.

Andy está indo para a faculdade, seus brinquedos acumulam poeira e estão eternamente condenados ao amor incondicional por seu dono; nas palavras do já lendário John Lasseter, na visão de um brinquedo “quando você está quebrado, pode ser consertado; quando você está perdido, pode ser encontrado; quando você é roubado, pode ser recuperado. Mas não há como contornar o momento em que uma criança cresce”. Woody e Buzz Lightyear sabem disso e em sua jornada que vai da aceitação até a melancolia causada pelo aparente abandono somos testemunhas da mais pura e libertária inventividade imagético-narrativa. E por mais coletivo que este trabalho seja não vejo como não direcionar grande parte de minha emoção ao diretor Lee Unkrich, um inacreditável estreante, que sabe da dimensão do material com o qual trabalhou. São sequências como a barbárie das crianças da creche Sunnyside ao encontrar os brinquedos novos, o flashback que explica as origens de Lotso (o urso de pelúcia ditador), os vídeos caseiros que nos mostram o crescimento de Andy (e de todos nós), a união dos protagonistas no momento de sua eminente destruição, que confirmam, consagram e definem os artistas da Pixar como alguns dos grandes contadores de histórias de nosso tempo, em tudo o que isso implica: a criação perfeita de atmosferas (o terror, a melancolia, o humor e a felicidade), a organização sensível e exata das sequências de cenas, que só pode envolver a consciência do poder que uma elipse, um leit motiv, um plano subjetivo e um close-up podem ter e o amor irrefreável por uma linguagem. Lee Unkrich e sua equipe estão, através do perfeito domínio de sua técnica, se colocando ao lado dos verdadeiros gênios (o já citado John Ford, Hayao Miyazaki e Charles Chaplin me vêem à mente). Gênios porque mimetizam na tela a dor e a necessidade da separação entre a infância e a vida adulta, porque nos dão a verdadeira dimensão do ato de oferecer a mão a um amigo, porque nos explicam (com a simplicidade que só pode ser fruto de um trabalho árduo) que a saudade não passa de um desejo de estar sempre junto de alguém.

Assistir à Toy Story 3, à última vez que Andy brinca com seus amigos da vida toda, à seu olhar hesitante e assustado quando percebe que deve se separar de Woody, à ternura caótica do mundo de uma criança e de seus brinquedos é vislumbrar a despedida mais linda, mais libertadora e mais triste que a arte da animação já produziu.

É uma história de brinquedos, é uma história de humanos, é uma história dessa coisa maravilhosa que somos capazes de estabelecer entre nós chamada amizade.



*originalmente publicado aqui em 19 de junho de 2010.

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Bala na agulha (estenografando sentimentos e reflexões)*


Por Mateus Moura

1º fato incontornável
Acompanhamos o classicismo de uma forma de expressão narrativa. A Pixar é hoje, industrial, ética e artisticamente falando, a mais bem sucedida empresa cultural do mundo.

2º fato incontornável
A verdade dos sentimentos só se expressam com a plenitude de suas potências através da beleza.

Toy Story 3
No lírico começo do fim, enfim adentramos completamente a mente de Andy - e a essência da Pixar - : o imaginário lúdico infantil. Reacompanhamos a brincadeira que entramos em contato do lado de fora há alguns anos atrás, mas agora de dentro. Somos jogados no imaginário infantil de fato, em toda a sua maravilhosa existência. Asas à imaginação, ao infinito e além... é o começo da última aventura de uma fase da vida de todos aqueles personagens, humanos e brinquedos.

"Toy story", como o título já diz, é uma estória de brinquedos. E é inteligentemente se compreendendo enquanto limite (liberdade) que a obra se permite os mais altos vôos. Woody e Buzz são brinquedos, não humanos. Não compreendemos enquanto experiência as visões da Senhora Cabeça de Batata, apenas nos encantamos com aquela outra forma de percepção (inventada). Toy story fala da humanidade sem dúvida, mas fala além, cria outro conceito, fala da "brinquedidade". Acompanhamos a perda da inocência de Andy, presente na vida de todos, com momentos simbólicos até parecidos (como a doação dos nossos brinquedos), mas se nos emocionamos com a triste estória do urso Lotso não é porque compreendemos como humanos a questão do abandono, mas porque compreendemos como brinquedos. As reflexões sobre a morte também não são humanas, o Inferno que Dante uma vez descreveu, na mitologia brinquedícia vira o lixão, numa das sequências audiovisuais mais belas da década. A seriedade com que este universo é animado (digo "animado" no sentido mais essencial: de dar alma ["anima"] ao inanimado), é inegável. Cada sequência é uma avalanche de beleza e significações que pretendo revisitar em momentos em que eu dispor de mais tempo para escrever com mais calma.

Faço correndo esse texto porque também não poderia passar em branco o primeiro contato...

*originalmente publicado no Cinemateus, em 21 de junho de 2010.

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