“O desenho não é só um prodígio da computação gráfica. Tem conteúdo, sendo este não uma ingênua moral de fábula como se pode supor se visto na superfície”.
“O segredo de qualquer filme de animação está na historia e não nos métodos para contá-la”. E ainda: “Para cada risada deve haver uma lágrima... o coração é que importa”.
“Cinema não é só a racionalidade estética. É a arte sensibilizando e extraindo emoções”.
O que tem de tão errado nessas três frases acima (extraídas do texto de Luzia Miranda Álvares sobre UP) que me motivam a escrever um segundo texto sobre a nova ANIMAÇÃO da Pixar?
A questão central é que desde muito tempo as animações da Pixar sofrem com o que de pior se pode fazer com qualquer obra de arte: defendê-la pelos motivos errados. Sim, porque se falassem mal de Up, por exemplo, com argumentos sem fundamento seria mais fácil de provar o contrário com argumentos bem fundamentados.
Comecemos do começo: “o desenho não é só um prodígio da computação gráfica”. “SÓ”?! Como assim “SÓ”? Me sinto algo perplexo por ter que lembrar que a animação é uma LINGUAGEM, não um gênero narrativo, e que LINGUAGEM quer dizer, antes de qualquer coisa, uma FORMA DE EXPRESSÃO. Por que a Literatura, a Escultura, a Pintura e o Cinema não são a mesma coisa? Porque cada uma dessas artes utiliza uma linguagem para se expressar, e como existe um número algo limitado de temas no mundo (quantos já falaram de amor, guerra, paz, ódio, amizade, sexo, violência?) o crítico de arte não deveria levar em conta, antes de qualquer coisa, COMO essas questões são tratadas? Ou por acaso existe uma hierarquia de assuntos, de temáticas, que são uns mais dignos e importantes do que os outros? A Declaração Mundial dos Direitos Humanos é uma obra mais importante do que Curtindo a vida adoidado por tratar de assuntos mais “sérios”? Mas, vou com calma, e me detenho na já citada perplexidade diante do início dessa citação de Luzia Miranda Álvares.
UP é um prodígio da ARTE de fazer animação utilizando a computação gráfica sim, e isso já basta. A animação digital não usa lápis e papel, usa mouse e programas de computador: a Pixar faz de uma máquina uma ferramenta para produzir a beleza estética das suas produções – e se não fizesse isso bem, quero deixar bem claro, eu não me daria ao trabalho de escrever nem 1 linha sobre as suas animações nem que elas contassem a saga de toda a humanidade em um curta de 1 minuto. O que me leva a segunda parte dessa primeira citação: “Tem conteúdo, sendo este não uma ingênua moral de fábula como se pode supor se visto na superfície”. Mais uma vez a perplexidade. Estaria se falando das fábulas clássicas? Aquelas que crescemos ouvindo de nossos pais? Aquelas que Walt Disney passou para a sua linguagem produzindo clássicos geniais e eternos como A Bela Adormecida, Alice no País das Maravilhas e Peter Pan? Mais uma vez não entendo (ou prefiro não entender) do que a crítica está falando. É necessariamente ruim uma fábula ser ingênua? E ter moral? E a que espécie de moral se refere aqui?
Gosto muito de uma crítica publicada no site da Revista Cinética, assinada por Diego Assunção, que fala sobre Wall-e, e que inicia da seguinte forma: “Wall-E é um filme infantil. Só que engana-se quem pensa que o uso da palavra “infantil” trata de algo inferior. Infantil está mais para uma denominação que, consigo, leva a arte para aquilo que deveria ser o seu real objetivo: um instrumento de libertação”. Mas que libertação é essa? Felizmente Assunção continua e se explica lindamente: “Por que o gênero infantil é “libertino”? Primeiro por causa do seu público, muito mais disposto a confiar e aceitar também a liberdade que o artista possa vir a tomar em qualquer inverossimilhança de roteiros, de regras morais, físicas e geográficas. Sendo a criança rebelde, livre por natureza (lembremos de Jean Vigo e seu Zero de Conduta), ela é a primeira a aceitar com os olhos livres e os corações abertos uma história de amor improvável, protagonizada por um casal formado por uma bela mulher e um monstro (A Bela e a Fera); a sentir as implicações morais e éticas do nariz mentiroso de Pinocchio (no filme homônimo); ou acompanhar com esmero a via-crúcis de um rato para se tornar cozinheiro (Ratatouille)”.
Espero que com as palavras de Assunção eu tenha deixado claro o motivo pelo qual o adjetivo “ingênua” me causou tamanha comoção. O que não falta é gente para elogiar as animações da Pixar por não serem “apenas para crianças”, por possuírem um “subtexto interessante para adultos”. Nada me causa mais asco: é desrespeito com a Pixar e com as crianças, além de ser ignorância – uma das coisas que têm ficado cada vez mais claras nas últimas produções da Pixar é o fato de que os seus artistas fazem a obra que querem sem uma obrigatoriedade com públicos pré-determinados.
Quem assistir os extras da edição especial de décimo aniversário de Toy Story encontrará John Lasseter, Pete Docter e Andrew Stanton (respectivamente diretores de Toy Story, Monstros S.A. e Wall-e) conversando sobre como foi imprescindível para a produção das sagas de Woody e Buzz Lightyear que eles pudessem trabalhar em LIBERDADE. Sem se preocupar com o “fato” de que as crianças “esperavam” um vilão, muita cantoria e uma história de amor ali pelo meio da história: Lasseter fez a animação que quis e como grande animação que é foi apreciada por muitos e muitos – crianças e adultos, cada um apreendendo aquele universo de uma forma e sento cativado por diferentes motivos.
A Pixar faz suas animações para o mesmo público que Alfred Hitchcock fazia seus filmes: os apreciadores de grandes obras de arte. Walt Disney fazia suas animações tradicionais (nomenclatura meramente classificatória), com seus vilões, sua cantoria, sua história de amor ali pelo meio e as fazia genialmente, por quê? Porque ele se importava com a forma com que iria contar a história.
O que nos leva à próxima citação, que na verdade é a crítica belenense citando Mr. Walt Disney: “O segredo de qualquer filme de animação está na historia e não nos métodos para contá-la”. Citação que pode enganar leitores desavisados: sim, Walt Disney realmente disse isso – falta um detalhe, no entanto. Os “métodos” a que ele se refere são os meios pelos quais você vai resolver contar uma história: ele não se importava se fosse em animação tradicional ou com a câmera cinematográfica – contanto que essa história fosse BEM CONTADA. Realmente, para Walt Disney a história tinha um lugar essencial nas suas produções, o que só reforça o fato de que, sendo ele tão apaixonado por aquilo que ia contar, é uma preocupação central e indispensável como essa narrativa nos será apresentada. Afinal que espécie de contador de história é tão apaixonado pelo seu conteúdo que prefere narrá-la de qualquer jeito? E indo para um exemplo mais cotidiano, que humorista simplesmente deixa de lado o modo como vai contar uma piada acreditando única e estritamente nas palavras que ele vai agrupar para formar sentenças que provoquem o riso?
Por fim chegamos a última citação: “Cinema não é só a racionalidade estética. É a arte sensibilizando e extraindo emoções”. Acho que nesse ponto do texto não preciso mais lembrar o leitor que a Pixar não faz cinema e sim animação (usei o caps lock acima por um motivo). Então vamos logo à parte mais absurda: a “racionalidade estética”. Duvido muito que Federico Fellini, Glauber Rocha, Roberto Rossellini e Martin Scorsese se refiram às suas preocupações estéticas como apenas “racionais”. Ver um filme de Glauber Rocha é sentir o sangue e o coração do diretor em cada fotograma seu, na criação de uma estética própria. Toda a dor de cabeça que esses e muitos outros grandes diretores de cinema têm por conta das questões estéticas estão construindo algo que está sendo dito sim, mas não podemos nunca esquecer que o que se conta só é o que se conta pela forma como se conta. Quem se esquece da fábula do rei que mandou matar os mais diversos videntes que lhe diziam que toda sua família seria destruída e só ele restaria sozinho e que elegeu um único vidente como seu conselheiro por este ter-lhe dito que sua família seria levada à morte mas que ele sobreviveria como o sol que iluminaria o futuro da nação e levaria seu povo à bonança? AINDA preciso dizer que foi o jeito que o vidente/conselheiro usou para dar a notícia que salvou sua cabeça?
Eu não amo Taxi Driver porque fala sobre violência, nem A Doce Vida porque fala do vazio existencial de uma geração, e muito menos Terra em Transe por ser uma crítica política: amo esses filmes porque disseram o que disseram maravilhosamente, utilizando a imagem (recurso máximo do cinema) de formas ESTETICAMENTE lindas. Não há apenas racionalidade nisso: isso É a sensibilização, isso É a extração de emoções.
UP foi mal defendido. A sensibilidade de Pete Docter passou despercebida. A sua genial ontologia de objetos, a perfeita construção de personagens, as brilhantes elipses para mostra a passagem do tempo – tudo foi reduzido a quase nada e nos deparamos com críticos elogiando a discussão de “direitos humanos” durante a animação. E mesmo quando se trata do conteúdo que existe, este é negligenciado: até agora não li uma palavra sobre a última cena – a casa à beira da cachoeira, a maneira de Docter nos mostrar pela imagem que é preciso, sim, seguir em frente, mas para isso existem certas coisas que precisamos levar conosco para continuarmos a ser capazes de ir adiante. Eu já havia dito isso, quando comentei o texto de Luzia Miranda Álvares em seu blog, porém até agora meu comentário não foi “aprovado”. Luzia diz que está aqui para construir. E eu pergunto: construir o que?
(Felipe Cruz – 2009)
“Ao planejar um novo filme não pensamos em adultos, não pensamos em crianças. Pensamos naquele lugar bem puro dentro de todos nós que o mundo nos fez esquecer e que o filme pode resgatar.” (Walt Disney)
p.s: texto de Luzia Miranda Alvares que é citado: http://www.blogdaluzia.com/2009/09/ainda-up.html ou http://www.blogdaluzia.com/2009/09/up-altas-aventuras.html
p.s2: se os textos acerca dessas questões estão sendo publicados na coluna ‘Panorama’ do jornal ‘O Liberal’, peço que este componha a discussão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário