17.5.11

Era uma vez em Hong Kong

*versão original do texto publicado com alterações no Jornal Amazônia do último dia 15/05.



Bruce Lee, Jackie Chan e, em menor número, Jet Li. Esses são os três nomes que você certamente irá ouvir caso saia por aí perguntando sobre o cinema chinês de artes marciais. Muito provavelmente, serão os únicos. Não se engane: nesse caso, não há grande diferença se a pessoa faz parte da galera que engrossa as filas dos blockbusters ou do seleto grupo de cinéfilos que frequenta sessões alternativas. Tudo bem, os últimos podem até citar Zhang Yimou ou Ang Lee. Isso não descaracteriza em nada o problema proposto: a marginalização (e consequente esquecimento) de toda uma tradição artística fundamental para o cinema. 

Justificativas são fáceis de encontrar; a dificuldade de acesso é uma. No Brasil, desde o fechamento da distribuidora China Video, a circulação de filmes tornou-se mais restrita e acontece, sobretudo, por meio de cópias importadas. Além disso, quem se nega a enveredar por estes caminhos traz sempre na ponta da língua os estereótipos próprios a quem olha o gênero de fora: roteiro banal, narrativa linear e, subentende-se, desinteressante, irrealismo, “glorificação” da violência. Para o público em busca de entretenimento, qualquer justificativa é aceitável, mas nenhuma é concebível para quem se propõe a estudar, criticar ou simplesmente conhecer cinema.

Capítulo importante na história da sétima arte, a produção que se notabilizou na Hong Kong dos anos 1960 e 1970 ainda é restrita ao círculo de fãs do gênero, especificamente, e do exploitation, em geral – cujo representante mais famoso é o diretor Quentin Tarantino. É necessária a expansão desse círculo em dois eixos: tanto em tamanho, quanto em profundidade, no sentido de enxergar o que realmente esse cinema tem a proporcionar, além de socos e pontapés.

De todos os gêneros cinematográficos, o filme de espadachim e de kung fu pode ser o mais difícil de se adentrar: causa o estranhamento de um musical, em que coreografias irrompem a qualquer momento e tomam proporções desnecessárias – à primeira vista. Se no gênero hollywoodiano, entretanto, a música ajuda o espectador a entrar no ritmo da cena, aqui a coisa é mais complicada uma vez que o ritmo está centrado na visualidade; ele vem muito mais do movimento, seja dos corpos pelo campo, da câmera, ou mesmo da montagem. 

Outra coisa necessária para se aventurar nesse cinema é certificar-se de ter feito o pacto com a obra. Como todo gênero, neste também há convenções que seriam completamente irrealizáveis fora do universo fílmico. Há que se respeitar a diegese e não contestá-las. É necessário, por exemplo, não questionar como um homem, mesmo gravemente ferido, é capaz de enfrentar uma multidão (O Assassino de Shantung, Chang Cheh, 1972); ou como marido e mulher passam a lua de mel disputando quem tem a melhor técnica de kung fu (Carrascos de Shaolin, Lau Kar Leung, 1977); é preciso aceitar o sangue vermelho tomate e os cenários de estúdio nitidamente artificiais.

Requisitos atendidos, basta despir-se dos preconceitos para perceber a riqueza dessa tradição. Se uma das características mais proclamadas da modernidade na sétima arte é a elaboração de um cinema do corpo, o filme de artes marciais de Hong Kong esteve na linha de frente. Nesse sentido, dois autores são fundamentais: Lau Kar Leung e Chang Cheh. Ao lado de King Hu, constituem a tríade que guiou a renovação do gênero, desenvolvendo, na confluência entre Oriente e Ocidente, uma estilística revolucionária. No entanto, enquanto neste último diretor o sentido de transcendência é sempre muito forte, a imanência, a ênfase no corpo ritualístico, é imprescindível aos dois primeiros.

É na trajetória desses corpos que se concentra o sentido do filme: seja o moral, seja o estético. Esbanjem energia ou desenvolvam a sua danse macabre; é para eles que tudo converge. Olhares, gestos, posturas dizem mais do que as palavras, que na maioria das vezes não dizem nada. “Eis o modo de dirigir atores: não os deixe falar”, teria dito John Ford ao ser questionado sobre o assunto. Como todo cinema, o filme de artes marciais é, sobretudo, modulação de movimento. E como todo cinema de gênero; é imagem. É óbvia a conclusão, mas ainda há quem a desconsidere: o estatuto de imagem lhe garante que, para proceder qualquer julgamento a seu respeito, primeiramente é necessário vê-lo.

Juliana Maués - APJCC 2011

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, belo texto e sem preconceito para o cinema Porrada, gostei muito!

Associação Paraense de Jovens Críticos de Cinema disse...

Obrigada, anônimo. Sei que esse é um cinema do qual muita gente não gosta e respeito isso; mas acho inadmissível alguém que nunca viu dizer que é ruim, objetivamente falando. E infelizmente isso acontece muito, inclusive, e principalmente, dentro da Academia... Enfim, preconceitos sempre ferram com tudo.
Juliana.