9.3.13

O barulho silencioso

O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho  

por Aerton Martins (APJCC - 2013)



Poderíamos, grosseiramente, colocar o filme “O Som ao Redor”, do cineasta Kleber Mendonça Filho, na seara de filmes onde a crônica social pinta o meio por onde suas personagens dançam em suas paranoias. Mas correríamos o risco de enquadrar a linda obra do diretor pernambucano no grupo de alguns desordeiros, que utilizam as muletas fincadas em uma temática supostamente “séria”, “comprometida”, a fim, apenas, de levar seus paquidérmicos e estéreis filmes a um patamar isento de quaisquer questionamentos e pedras nos bolsos. Kleber Mendonça Filho se entrega à sétima-arte. Nós, brasileiros, adornados por uma síndrome de vagabundo e cachorro sarnento, precisamos nos afirmar como algo que existe, ser-nação, alma multicolorida e rica, que inala oxigênio, politizados e que também respira cultura e sabe comer de talheres. Seu filme não deseja afirmar e é sobre o indivíduo. Acende o som que tentamos propagar ou anular em nossos poros. Um drama do indivíduo disfarçado de crítica social. Com facilidade, as imagens saltam aos olhos, vide a cena de abertura, onde planos em preto e branco instauram um lugar, espaço, que, outrora, carregado de sofrimento com o cheiro sanguinolento do pesadelo em suas almas, permite a leitura de um dos microcosmos que cintilam na obra. Corte para uma garota de patins, símbolo de movimento e que carrega o corpo, apenas, para outro lugar, mas que leva a mesma força da inação do espírito, vazio, sem direção. Uma fatia de um condomínio, babás e suas crianças tateando o gosto pela “liberdade”, bolas, bambolês, meninos agrupados em um canto do enquadramento, a tentativa de refrear o esmagamento da construção e seus ruídos, a motosserra irritante queima e provoca inquietação. Talvez seja essa a palavra para descrever a construção de “O Som ao Redor”: inquietação.


 A narrativa acontece em torno de um quarteirão. A rua, usada como painel de declarações, dizeres grafados no asfalto, é a única detentora da aparente racionalidade. É ela quem testemunha o mundo insano e o medo irracional que os moradores sentem. Os seguranças que chegam ao local, com o suposto objetivo de trazer paz aos moradores, oferecem proteção; os “anjos da guarda” sentem receio do mal estar de uma mulher que sai do carro para vomitar e de uma criança trepada na árvore.Thriller soprando a vizinhança. O ronco do marido, os latidos do cachorro, os filhos debruçados sobre a aula de Chinês, fazem a moradora querer a máquina de lavar roupa invadindo seus desejos carnais. O carinho oferecido pela máquina em um plano próximo da parte intima da angustiada mulher cria essa proporção da tensão. O morador que defende o porteiro das acusações de estar dormindo no trabalho é o mesmo que desconfia dos pés nus do filho de sua empregada, largados e deitados no sofá de sua casa. O Scope, alargamento da tela, usado em “O Som ao Redor” potencializa esse torpor, reduz o homem a obedecer e admitir sua pequenez perante o espaço ambiente; a força misteriosa que rege nosso redor, a bola “não” utilizada, o aparelho importado queimado acidentalmente pela empregada, o som roubado do carro. A massagem dos filhos na mãe, alinhados como uma máquina sobre um corpo corroído pelo estresse, traz o barulho, a música. Relaxar corpo e mente em meio ao grito da canção, a voz alterada. A música alivia, porém também tensiona; o vendedor de discos piratas e seu carrinho alto incomodando a vizinhança.


Um filme de horror disfarçado de drama familiar. Aferir o novo trabalho de Kleber Mendonça como um filme do "horror" não seria exagero, levando em consideração que seu realizador fez o curta-metragem “Vinil Verde”, 2004, e que a palavra vem do sentimento de “repulsa”, o real contém o “horror”. Se no curta o que acontece nos corredores, cômodos da casa, onde a menina é proibida de escutar o vinil que dá nome ao título, provoca arrepios, agora, o ambiente, em “O Som ao Redor”, fabrica-os; é um plano entrecortado pelo vulto de uma criança no corredor, a espera  incômoda dos guardas na cozinha do patriarca, os corredores brancos do prédio que mais se “parecem uma fábrica”, diz a certa altura um personagem. A cena do sonho traduz o medo, temor, constante que habita o ser humano. Quando Kleber Mendonça mostrou Halloween (1978, de John Carpenter), Amantes (2008, de James Gray) e outras obras para sua equipe e seu diretor de fotografia, Pedro Sotero, sua intenção era sugerir um aprendizado sobre a arquitetura da vizinhança em uma tela larga e sentir o realismo filmado à maneira da Hollywood clássica, sem “falcatruas”, como declarou o cineasta. Em Amantes, o classudo cineasta James Gray mancha na tela suas personagens com o gosto agridoce do real, palpável, onde a câmera se aquieta e observa o percurso dolorido por qual o personagem de Joaquim Phoenix é obrigado a trilhar. Observar. É o que a câmera em “O Som ao Redor” opera. O que salta das telas é a permanência do horror em nosso doce e, por vezes, aborrecido cotidiano. "O Som ao Redor" é o barulho silencioso que o cinema brasileiro precisava.

Nenhum comentário: